Uma vitória inédita

16 Maio 2024 | 7min de leitura

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Ao escutar o anúncio do seu nome na entrega do ­National Book Award, um dos principais prêmios literários dos Estados Unidos, Stênio Gardel viu, num átimo, a vida passar à sua frente.

Natural de Córrego de Areia, povoado de Limoeiro do Norte (CE), Gardel, desde menino, sonhava escrever. A distância entre esse sonho e o anúncio ouvido na cerimônia realizada em Nova York, na quarta-feira 15, parecia, no entanto, inatingível até do ponto de vista “geográfico”, nas palavras do autor.

“Foi um susto”, diria, três dias depois, em entrevista a CartaCapital, via Zoom. Gardel estava em Miami e participaria de um evento literário antes de retornar a Eusébio, na região metropolitana de Fortaleza, onde mora. “Ainda não percebi totalmente a repercussão de tudo isso.”

A Palavra Que Resta, seu primeiro romance, lançado no Brasil em 2021, pela Companhia das Letras, foi escolhido o melhor livro de Literatura Traduzida do ano nos EUA. Foi a primeira vez que o Brasil ganhou o prêmio. Essa categoria foi criada em 2018, e já laureou, entre outros, o húngaro László Krasznahorkai e a argentina Samanta Schweblin. ­Gardel tinha, nesta 74ª edição, concorrentes de peso, como os franceses David Diop e ­Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do Goncourt, e a colombiana Pilar Quintana.

O texto foi vertido para o inglês por Bruna Dantas Lobato, que divide o prêmio, em dinheiro, com o autor. A edição estadunidense coube à New Vessel Press, uma casa independente, e recebeu o título de The Words That Remain.

O romance tem como protagonista Raimundo, um homem analfabeto que, aos 71 anos, resolve aprender a ler para, finalmente, descobrir o que está escrito em uma carta deixada guardada por meio século. A carta lhe fora entregue por Cícero, seu amor de juventude. A história se passa em uma pequena cidade do Nordeste.

Não é difícil encontrar ecos da vida de Gardel na construção ficcional. Ambos, inclusive, guardaram palavras consigo por muitos anos. Raimundo, as palavras escritas que não podia ler. Gardel, as que desejava escrever. Embora caneta e papel fossem seus companheiros desde cedo, foi apenas aos 41 anos que ele publicou o primeiro livro.

Gardel, assim como seu personagem, é gay e cresceu numa comunidade rural, no interior do Ceará, ao lado da mãe, do irmão e dos avós maternos. O pai morreu quando ele tinha apenas 6 anos.

Sua mãe, Irene, a quem o livro é dedicado e a quem Gardel fez referência no discurso de agradecimento, morreu poucos meses antes do lançamento do romance. Na conversa com CartaCapital, ele lembrou, comovido, do quanto ela sempre acolheu seu sonho de contar histórias.

“Quando eu tinha uns 12 anos, aperreava ela que queria uma máquina de escrever”, conta. “Era algo caro na época, mas ela, com muito esforço, comprou uma. E tenho até hoje. É uma Olivetti, daquelas que vinham num estojo.” A mãe, ao mesmo tempo, insistiu para que o filho não descuidasse do sustento – dele e da própria família, que tinha de ajudar.

Gardel trabalha no TRE e estreou na ficção aos 41 anos. À esq., no colo do pai, com a família; e a casa da infância, em Córrego de Areia – Imagem: Fernanda Oliveira e Acervo pessoal

No momento do vestibular, ele escolheu Engenharia Civil, mas, após quatro anos, largou a faculdade e prestou concurso para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE), onde trabalha há 18 anos, como técnico judiciário, na área de manutenção e logística das urnas eletrônicas. Mais adiante, concluiu engenharia, garantindo assim o diploma universitário.

O curso que o levaria à realização do sonho de criança seria, no entanto, outro: uma especialização em Escrita e Criação, dado pela jornalista e escritora Socorro Acioli, na Unifor.

A Palavra Que Resta começou a ser pensado em 2013. Ao longo de quatro anos, Gardel fez anotações esparsas e, em 2017, tirou férias com o objetivo de se dedicar exclusivamente à escrita do romance. Durante três semanas, escreveu todos os dias, em todos as horas. Foi aí que o projeto deslanchou.

Livro pronto, ele o mostrou a Socorro Acioli, tornada sua amiga. E foi ela quem encaminhou a obra para a Companhia das Letras. “O sonho de ser autor publicado ganhava dimensões reais. Eu não queria autopublicação, concurso… Buscava a legitimação de uma editora”, diz.

A principal categoria do prêmio, de ficção norte-americana, também foi para um autor gay de origem latina, o porto-riquenho Justin Torres, por Blackouts, que aborda a identidade queer e o apagamento da cultura LGBT nos EUA.

O prêmio, ressalta Gardel, traz, obviamente, uma satisfação pessoal e profissional, mas traz, acima de tudo, uma visibilidade inédita para o romance. A Palavra Que Resta já tinha sido vendido para a Itália e agora, graças ao National Book Awards, deve seguir para outros lugares.

“Eu gostaria que o livro, por meio da história do Raimundo, ajudasse as ­pessoas a pensar nas suas próprias vidas. Que, vendo a trajetória dele, os leitores pensassem em suas próprias posturas, nos seus preconceitos”, diz, com o sorriso discreto que marca sua expressão tranquila.

Neste momento, Gardel trabalha na finalização de novo livro, um cordel infanto-juvenil, chamado Bento Tempo Vento, que trará ilustrações do premiado Nelson Cruz, e será publicado no próximo ano pela Companhia das Letrinhas. “É a história de um menino que tenta ajudar o avô, que está com Alzheimer, a se lembrar das coisas”, diz. “É algo bem diferente do que já fiz, mas, novamente, tem algo de autobiográfico.”

Deve ser então, assim como a história de Raimundo Gaudêncio, também a comovente história de Stênio Gardel, o garoto que saiu do Ceará e, um dia, atônito, se viu subindo em um palco em Nova York, para receber um dos principais prêmios literários do mundo. •

A tradução como reescrita

Bruna Dantas Lobato sempre se incomodou com o tom caipira, do sul dos EUA, emprestado aos personagens nordestinos

O romance saiu pela Cia. das Letras e pela New Vessel Press – Compre na Amazon

Ao subir ao palco do NYU Skirball para receber o troféu pela tradução de A Palavra Que Resta, Bruna Dantas Lobato fez questão de dizer que seu nome estava onde devia estar: na capa. A vitória do romance no National Book Award é também a vitória de um processo de tradução. E de uma mulher que, assim como Stênio Gardel, viu brotar, ainda criança, um amor inexplicável pelos livros.

Filha de mãe solo nascida no interior da Paraíba e criada em Natal (RN), Bruna começou a aprender inglês sozinha. Na adolescência, candidatou-se à concorridíssima bolsa do Programa Jovens Embaixadores, do Departamento de Estado dos EUA, e ganhou. Após o intercâmbio, recebeu apoio da Fundação Estudar para tentar uma vaga no Bennington College, que a havia fisgado por um folder: “Leia cem livros, escreva um”. Hoje, ela ri do slogan.

Aluna bolsista, lembra-se do frio, das árvores desfolhadas e da saudade da família. “Minha mãe não tinha internet. Eu ligava para uma vizinha para falar com ela”, recorda-se.

Morando nos Estados Unidos desde a adolescência, Bruna, aos 33 anos, guarda do português um gosto de casa e de afetos. Mas seu português, faz questão de ressaltar, não é aquele do Jornal Nacional. Seu português é o nordestino – exatamente o do livro de Gardel.

E foi essa sensibilidade que ela colocou em The Words That ­Remains. “Li traduções que usavam uma linguagem típica do Sul dos Estados Unidos, de caipira, para os personagens nordestinos”, explica. “Essa opção dava um tom cômico a personagens e situações supersérios no original.” Bruna e Gardel trabalharam de maneira muito próxima e tratam esse encontro como uma sincronicidade.

Bruna também já verteu para o inglês O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, e Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu. No momento, se debruça sobre a tradução de seu próprio romance, Blue Light Hours, escrito em inglês, para o português. No Brasil, o livro sairá pela Companhia das Letras.

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.