'A literatura está muito preguiçosa', diz César Aira, que terá nova leva de livros editados no Brasil

Ruan de Sousa Gabriel 15 Maio 2024 | 8min de leitura

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Depois de subir três lances de escada, o escritor argentino César Aira, de 75 anos, se joga no sofá para recuperar o fôlego. Ele descera para abrir o portão para o repórter e a fotógrafa, que esperavam numa esquina tranquila do bairro portenho de Flores, onde o autor vive há 50 anos. Aira recebeu o GLOBO num apartamento atulhado de caixas de papelão (uma delas decorada com um recado dos netos: “Feliz aniversário, vovô César”), discos, livros e móveis tão escangalhados que, palavra de escritor, nem a caridade quis.

Mas ele não mora mais lá. Mudou-se ano passado (mas não saiu do bairro) porque sua esposa, diagnosticada com esclerose múltipla, não sobe mais escadas. Volta à antiga casa todo fim de tarde para ler, escrever e ouvir música. Deitado no sofá, conta que se rebelou: parou de fazer a barba. Não é só a desordem dos pelos faciais que denuncia a rebeldia do escritor. A das estantes também. Obras de Shakespeare estão por todo lado e o filósofo alemão G.W.F. Hegel é vizinho de Robert Arlt, outro escritor do bairro de Flores.

Aira é autor de mais de uma centena de livros (que não costumam superar cem páginas) e muitos acreditam que será ele a dar o primeiro Nobel de Literatura para a Argentina. Embora tenha leitores fanáticos no Brasil, ainda é pouco publicado por aqui. Mas isso deve mudar. A Fósforo anunciou a edição de 16 novelas do argentino. O quarteto inicial entra em pré-venda no dia 1º de abril e chega às livrarias no fim do mês. São eles: “Atos de caridade”, parábola irônica sobre as virtudes cristãs; “O congresso de literatura”, protagonizada por um César Aira que tentar clonar o escritor mexicano Carlos Fuentes; “Prova”, no qual duas garotas punk param uma moça e a convidam para transar; e “O vestido rosa”, que acompanha as vicissitudes de uma peça de roupa que sobreviveu às guerras do governo argentino contra os indígenas no século XIX.

Os quatro concentram as características que fizeram de Aira um escritor tipo exportação: o humor delirante, a reverência pela literatura, o fascínio pela cultura pop e o gosto pelo insólito. A cada página, ele escandaliza o leitor com um absurdo maior que o anterior (como o verme azul gigante que devasta uma cidade venezuelana em “O congresso de literatura”).

Na conversa com o GLOBO, Aira desconstruiu o mito que se criou ao redor dele, reclamou que hoje “tudo é autoficção” e comparou a felicidade da literatura brasileira com a tristeza das letras argentinas. Confira a seguir.

Você já disse que o mito que que abarca a vida e a obra de um escritor depende sempre um mal-entendido. De que mal-entendido depende o mito de César Aira?

Minha fama de ermitão começou quando parei de dar entrevistas na Argentina. Lançando três livros por ano, tinha que dar entrevista todo mês! Não tenho nenhum problema em dar entrevista quando viajo ou um jornalista estrangeiro vem a Buenos Aires. Como quase nunca saio do bairro, virei o “misterioso escritor de Flores”. Não saio porque minha mulher tem esclerose múltipla e me ocupo dela. Toda essa mitologia tem causas práticas e reais.

Flores é um cenário recorrente em suas novelas. Que importância o bairro teve na sua formação como escritor?

Na verdade, não gosto muito daqui, não. Mas não conte isso ao diretor do Museu Bairro de Flores, porque eu sou o escritor do bairro, sabe? Moro aqui por uma casualidade. Quando vim estudar em Buenos Aires, meus pais compraram um apartamento aqui, no prédio onde vivia uma tia. Quando minha filha caçula nasceu, nos mudamos para cá. Agora, que minha esposa não consegue mais subir escadas, estamos em um prédio com elevador.

Você tem mais de cem livros publicados. Qual o segredo da produtividade?

Começar. As ideias surgem a partir do ato de escrever. Se não sei para onde ir, não posso parar e pensar, porque aí não sai nada. Continuo escrevendo, e a história se faz nesse movimento. Com a prática, inventar histórias se torna natural. Mais jovem, eu escrevia todos os dias, mas nunca mais de uma página. Na verdade, sou o menos prolífico dos escritores argentinos, porque nunca fiz jornalismo nem dei aula. Se você escreve uma página por dia, no fim do ano tem 300. No meu caso, isso são três livros. Por isso dizem que sou prolífico (risos).

Por que os seus livros são tão magrinhos?

Talvez porque eu seja um poeta frustrado.

Há vários personagens chamados César Aira em seus livros, como o escritor maluco de “O congresso de literatura”. Como é criar versões de si mesmo?

Empresto algumas características minhas aos personagens, mas não muitas. Nos livros, sou um sábio louco. Na realidade, sou bem normal. Uma vez me perguntaram se eu participei do mundo punk e gay dos anos 80, descrito em “A prova”. Veja a fama que um escritor pode ganhar! Naquela época, eu estava criando filhos, lavando pratos e traduzindo para ganhar a vida. Daqui a cem anos, talvez alguém leia essa novela e pense: “Que vida teve esse Aira!” (risos).

No texto “Romance argentino: nada mais que uma ideia”, publicado em 1981, você criticou a maneira “oportunista” como os ficcionistas retratavam a realidade política. Esse problema persiste?

Totalmente. Talvez não com a militância que havia em outro momento, mas ainda é assim. É como se a atualidade fosse o único tema da ficção! A literatura está muito preguiçosa, pouco imaginativa. Tudo é autoficção. Está tudo meio plano, acho que é influência do realismo americano. Por isso, o que mais faço hoje é reler. Estou relendo “Dom Quixote”.

Esse gosto pela imaginação explica por que sua obra é tão influenciada pela cultura pop, dos quadrinhos aos desenhos animados?

Sim. Tenho muito carinho pela cultura pop. Assisto todos os dias a um desenho chamado “As terríveis aventuras de Billy e Mandy”. São duas crianças que fazem uma aposta com a morte e ganham. Gosto desses desenhos animados delirantes em que explode uma dinamite e o personagem fica todo preto, com os cabelos arrepiados. Minha mulher assiste aos noticiários, mas eu acho todos deprimentes, cheios de clichês...

Você gosta do rock dos anos 1980, como a protagonista de “A prova”?

Outro dia, uma editora me convidou para escrever o prólogo de uma nova edição de “O estrangeiro”. Disse que não porque a única coisa boa que (Albert) Camus fez foi inspirar a música de The Cure (“Killing an Arab”). Eu parei nos anos 80: Morrissey, The Cure, Suede. Também gosto de bossa nova, de ouvir João Gilberto cantando “Chega de saudade”.

Não deixou de ouvir Morrisey depois que ele se aproximou da extrema direita?

Ah, por favor!

Você descreveu a literatura brasileira como um “quase inesgotável tesouro de deleites”. O que te encanta na nossa literatura?

Há três grandes literaturas na América Latina: a brasileira, a mexicana e argentina, que vem por último, talvez por cortesia do dono da casa. Comecei lendo Dalton Trevisan em castelhano, depois li uma tradução espanhola de “Grande sertão”. Aprendi português lendo. Quando ia ao Brasil, comprava livros como “Os sertões”, que é genial. Os livreiros estranhavam. Quem ainda lê Euclides da Cunha? A literatura brasileira é fantástica, sensual, feliz. Embora o meu preferido dos contemporâneos, João Gilberto Noll, não seja nada feliz.

A literatura argentina não é feliz?

Não. Aqui, os escritores pegam o personagem e dizem: “Agora você vai ver o que é bom.” Fazem-no sofrer penúrias até a morte! Antonio Di Benedetto (1922-1986) era especialista nisso. Todos os livros dele são deprimentes. Quando eu era criança, o suplemento literário do La Nación vinha cheio de contos de escritores sádicos, que humilhavam seus protagonistas. Nós escritores somos mal-agradecidos, nos vingamos dos personagens que criamos.

Você já disse que escreve para que os habitantes do futuro possam reconstituir a Argentina caso ela despareça. Livros tão delirantes podem reconstituir um país?

Acho que exagerei um pouco (risos). Talvez tenha dito isso para épater la bourgeoisie (escandalizar a burguesia). A realidade é o cimento que uso para inventar. Um amigo meu diz que gosta dos meus livros porque eles são realistas a tal ponto que deixam de sê-lo e levantam voo. Mas é como disse o escritor francês Jacques Vaché: “Não há nada que mate tanto um homem como obrigá-lo a representar seu país”. Ele se referia à guerra, mas vale também para a literatura.

Foi confirmada a publicação de 16 livros seus no Brasil. Como se sente?

Muito contente. Publiquei em muitos países, mas tive má sorte no Brasil. Comecei em uma editora pequena, depois fui para outra que foi comprada por um grupo maior que parou de me publicar. O Brasil é o único país, além do Uruguai, que visitei como turista. Viajei para outros países porque me convidaram. Passei alguns dos momentos mais felizes da minha vida no Rio de Janeiro. Mas ainda conheço pouco o Brasil. Quero ir à Bahia e ao Norte.