Quais são os alimentos com os dias contados e qual é o futuro da segurança alimentar

16 Maio 2024 | 15min de leitura

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Plantas alimentícias não convencionais, como o jambu, “são riquíssimas nutricionalmente, muito bem adaptadas às condições extremas”, segundo Carlos Pacheco, da Embrapa — Foto: Keiny Andrade/Folhapress
Plantas alimentícias não convencionais, como o jambu, “são riquíssimas nutricionalmente, muito bem adaptadas às condições extremas”, segundo Carlos Pacheco, da Embrapa — Foto: Keiny Andrade/Folhapress

A batata solanum calvescens (ou s. chacoense) era tida como lenda entre os pesquisadores brasileiros. Foi vista em uma das expedições de reconhecimento da flora nacional pelo botânico francês Auguste de Saint-Hilaire no século XVIII e descrita pelo botânico alemão Friedrich Bitter em 1912. Depois, nunca mais. Com ela, seriam quatro as espécies silvestres encontradas no Brasil. Mas só essa seria endêmica - só havia aqui.

Em 2008, ao ouvir de um produtor a possibilidade de tê-la reconhecido, a especialista da Embrapa Caroline Castro não titubeou. Como nos velhos tempos, montou sua expedição. Ela e a fonte saíram em busca da batata perdida por uma trilha no sul de Minas Gerais, em plena Serra da Mantiqueira. Lá estava o exemplar, que tratou de depositar no banco ativo de germoplasma de clima temperado da Embrapa - o acervo com os tesouros da memória vegetal da região criado nos idos da década de 1980.

A batata não parece muito diferente daquelas que se comem no dia a dia. Mas é amarga, como as parentes silvestres, por causa dos glicoalcaloides, mecanismo natural de defesa de plantas rústicas, tóxico se ingerido em quantidade. Seu valor estaria na capacidade de adaptação a ambientes inóspitos.

Uma das culturas mais importantes do mundo, a batata, principal hortaliça produzida e consumida no país - que é autossuficiente -, pode estar com os dias contados. Isso explica o entusiasmo de Castro e seus colegas, que apostam na resistência de plantas nativas, esquecidas pelo tempo, como uma das soluções a uma questão que aflige o mundo inteiro: o futuro da segurança alimentar.

Alexandre Antonelli: “O mundo está ficando muito mais quente, muito mais imprevisível” — Foto: Divulgação
Alexandre Antonelli: “O mundo está ficando muito mais quente, muito mais imprevisível” — Foto: Divulgação

Elas podem ajudar os cientistas a chegar a espécies mais fortes, produtivas e ricas em nutrientes a partir da adaptação do cultivo, da edição e modificação genéticas e do que cientistas consideram como necessária alteração de hábitos alimentares. Afinal, por que não consumir espécies semelhantes ou nativas? Claro que a batata do futuro terá de ser apetitosa. Os cientistas também estão se encarregando disso.

A mudança do clima e os extremos climáticos cada vez mais frequentes impõem níveis de estresse que podem fazer desaparecer sementes, grãos e vegetais levados à mesa hoje. O brócolis é um deles, de acordo com uma pesquisa da Embrapa, que submeteu a altas temperaturas variantes comerciais consumidas do Brasil. Num primeiro momento, a entidade vem tentando identificar, dentre materiais genéticos disponíveis, quais têm mais potencial de adaptação às novas condições.

Para quem gosta de alface, a boa notícia é que, das 12 variedades disponíveis comercialmente, 3 tipos de alface crespa verde teriam aguentado temperaturas extremas na câmara de crescimento da entidade. As outras apresentaram danos imensos, muitas com “produtividade nula”.

Os testes simulam as temperaturas previstas para o fim do século, assim como intensidade luminosa e emissões de carbono. O painel intergovernamental de mudança do clima calcula algo na casa de 3,5 a 4 graus a mais. Os pés de alface da Embrapa estiveram sob temperaturas médias entre 31 e 35 graus - a média do país está atualmente em 25 a 26 graus.

“Aqui, não estamos falando de outros extremos climáticos como secas, ventos e alagamentos. Imagine todos somados. Não usamos ainda os genótipos perdidos nos bancos de germoplasma. É um ‘screening’ para tentar encontrar matérias promissoras. Há ainda as ferramentas de melhoramento genético, genética molecular”, diz Carlos Pacheco, especialista da Embrapa Hortaliças que se ocupa desses testes.

O “Relatório Estado Mundial das Plantas e Fungos”, de Kew Gardens, maior jardim botânico do mundo e um dos maiores depositários do acervo vegetal do planeta, revelou que cerca de 45% das plantas do globo estão sob risco de extinção. Os dados foram divulgados em outubro de 2023.

Caroline Castro, da Embrapa, saiu em busca da batata perdida, uma lenda entre pesquisadores — Foto: Divulgação
Caroline Castro, da Embrapa, saiu em busca da batata perdida, uma lenda entre pesquisadores — Foto: Divulgação

Em entrevista ao Valor, o diretor científico de Kew, o brasileiro Alexandre Antonelli, afirma que, na Mata Atlântica, 82% das árvores nativas endêmicas desapareceram. No mundo, a redução bateu os 69% no período. Em 50 anos, 94% dos animais selvagens da América Latina foram dizimados.

A necessária adaptação dos itens consumidos pela população global, que ultrapassou 8 bilhões de bocas no ano passado, é um desafio. Dono da maior biodiversidade do mundo e principal fornecedor de alimentos para o planeta, o Brasil pode ser chave neste momento de transição, segundo Antonelli. De seu território podem sair respostas para espécies novas, antigas ou simplesmente adaptáveis, além de parcerias para pesquisa.

Mas é preciso saber aproveitar, e logo, as oportunidades para enfrentar o duplo desafio econômico e de segurança alimentar. A agricultura representa aproximadamente 1/4 do Produto Interno Bruto brasileiro.

O Brasil é o país do mundo onde há mais descobertas - por volta de 200 espécies de plantas por ano ou 10% do mundo todo, segundo Antonelli. E cada espécie carrega uma série de oportunidades financeiras, de saúde e de alimentação. Em sua avaliação, isso começa a ser compreendido pelo país. Afinal, é a forma de o Brasil se manter na liderança na produção mundial de alimentos.

Isso significa também investimentos, campos experimentais com geração de empregos, novas companhias, universidades colaborando com a indústria, muitas possibilidades para trazer recursos para a população, estados e para o governo brasileiro. Recentemente, segundo ele, Kew tornou-se o primeiro parceiro internacional a dar suporte científico para o Brasil para explorar o potencial da biodiversidade em termos da bioeconomia. O entendimento, firmado com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, segundo ele, deixa claro que existe interesse em transformar a economia brasileira.

“Isso foi feito na Colômbia para ecoturismo e espécies úteis. Não se pode continuar com atividades destrutivas. É preciso gerar recursos mantendo os ecossistemas em pé. O potencial é imenso. Muitas espécies descobertas são parentes próximos de outras existentes. Publicamos grande relatório na revista ‘Science’ com mais de 35 mil espécies de plantas, 10% das conhecidas, com uso para o ser humano. Grande número na América do Sul, na Amazônia, no Brasil em geral. A conversa até hoje nunca levou em consideração as espécies úteis. Elas têm potencial ainda não explorados. Espécies não documentadas”, diz.

Para o especialista, o Brasil está num momento de transição interessante em nível global por se tratar de um país que, tradicionalmente, foi totalmente contra qualquer tipo de prospecção.

“Sempre houve muito medo de biopirataria. O discurso foi de que as espécies devem ser protegidas, e devem. Mas [o país] está entrando numa época de valorizar a biodiversidade, não só pelo valor intrínseco, moral das espécies, mas pelo valor econômico, como fontes de remédios e alimentação. Existe um provérbio na África: ‘Se não usa, perde’”, afirma Antonelli, que nota que o Brasil foi um dos focos da última edição da COP, a conferência do clima, em Dubai.

Neste contexto, entram as chamadas plantas de alimentação não convencionais (ou pancs, no jargão). Pacheco, da Embrapa, menciona uma lista delas que tem sido estudada pelos colegas. Do jambu ao ora-pro-nóbis (rico em niacina, uma vitamina que transforma os carboidratos, as proteínas e as gorduras em energia), passando por peixinho da horta (alimento rico em fibras com capacidade antioxidante), azedinha e cará do ar, existem inúmeras espécies vegetais que se consumiam muito no passado, muitas delas de Minas Gerais, como a batatinha de Caroline, e do Norte do país.

“São riquíssimas nutricionalmente, muito bem adaptadas às condições extremas. No Norte, toleram chuvas intensas e calor extremo. A população desconhece essas plantas. São saborosas”, destaca Pacheco.

Com o plantio em larga escala, grandes monoculturas e a necessidade de se atender aos mercados, muitas foram deixadas de lado. Nos últimos anos, as forças do mercado limitaram o uso de grãos e sementes a um número reduzido de exemplares tidos como mais produtivos e saborosos. Mas os tempos são outros.

O arroz é um deles, apesar das mais de mil espécies existentes. O café é outro. Por milhares de anos, os seres humanos usaram várias espécies diferentes e variedades de café. Há cerca de cem anos, limitaram-se basicamente ao robusta e ao arábica, que domina o comércio internacional, mas não tolera a temperatura atual de muitos países.

Segundo Antonelli, isso vai representar grande problema para o Brasil, um de seus maiores produtores. Ele menciona a descoberta no Oeste da África tropical de espécie de café que não era vista havia um século.

Ela tolera 5,8 graus a mais de temperatura e, de acordo com o resultado de testes às cegas, tem sabor superior ao do café tradicional. Seria ótima oportunidade para cultivo e elemento de desenvolvimento da África. Mas ainda lhe falta uma característica importante valorizada pelos produtores. As frutas são menores. A colheita também. Nada que o cruzamento com outras espécies não possa ajudar.

“O arroz com feijão é tradição no Brasil. Mas o feijão não poderá ser cultivado da mesma maneira no futuro. O mundo está ficando muito mais quente, muito mais imprevisível. Temos de ter uma conversa multidisciplinar, que vai envolver ciência, psicologia, educação, incentivos, o trabalho de governos e a conscientização do público”, afirma Antonelli, que também é autor do livro “The Hidden Universe: Adventures in Biodiversity”, ainda sem tradução em português, editado em diversos países.

Na publicação, a partir de sua longa trajetória profissional, ele explica as mudanças por que passa o mundo. Esse é um movimento de vários cientistas de renome para popularizar o conhecimento e conscientizar as pessoas. No livro, ele fala dos desafios das espécies ameaçadas, causa das ameaças e perdas de diversidade, além das tendências globais, com vários exemplos do Brasil, onde nasceu e se criou, e por onde passou em suas várias expedições de pesquisa pela América do Sul. Ele vai de conceitos de espécies e ecossistemas a soluções para enfrentar o problema, entre elas legislações e acordos internacionais.

Em Kew, trabalha-se com uma planta bem parecida com a banana, a “enset”, consumida por algo entre 10 e 20 milhões de pessoas no Sul da Etiópia. Sua polpa pode manter uma família por duas semanas. As folhas servem para fazer telhados; as fibras, roupas. Existe um potencial grande de cultivá-la em boa parte da África, talvez até na América Latina. “Temos que explorar possibilidades. Isso recebe pouca atenção. As pessoas confiam muito nessa pequena quantidade de plantas para a sobrevivência”, diz Antonelli.

No Brasil, a despeito dos parcos recursos, a Embrapa tem sido incansável. No Centro de Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (GCCRC), criado a partir de parceria com a Unicamp, a entidade trabalha entre outras coisas com a “edição gênica”.

Não é modificação genética, que é outra técnica. Neste caso, trata-se de manipular as vias metabólicas dos genes. Ou seja, o conjunto de reações que acontecem dentro das plantas, como a fotossíntese, a respiração e tudo o que afeta seus estágios de desenvolvimento.

Saber mexer com grupos de genes e substâncias metabólicas pode ser suficiente para adaptar as plantas sem necessariamente modificá-las geneticamente. “Pode-se, por exemplo, ‘desligar’ ou ‘ligar’ um gene responsável por um fenótipo, criando um benefício que torne a planta mais robusta”, explica Isabel Gerhardt. É como se se encontrasse o gene que funciona com uma espécie de caixa de disjuntor da planta. É isso o que tem tentado fazer ao sequenciar 26 genomas de milho.

O sequenciamento genômico de plantas nativas, ou crioulas, também oferece respostas. Genótipos e fenótipos podem oferecer alternativas para cruzamentos, cópias ou simplesmente características a serem replicadas em outras plantas similares.

E nessa seara têm sido providenciais as plantas encontradas sobretudo nos ecossistemas conhecidos como campos rupestres, que ocorrem nas serras do Espinhaço e da Canastra, também em Minas e Bahia, onde enfrentam longos períodos de seca e calor e vivem em solos pobres em nutrientes, sob forte radiação solar. Embora ocupem menos de 1% do território brasileiro, representam mais de 15% da biodiversidade.

Quatro genomas de plantas ressurgentes (ou revivescentes) e de sempre-vivas da região estão sendo estudados. As velozias pertencem a famílias de angiosperma tolerantes à desertificação. As primeiras são capazes de se manter secas com até 5% de sua quantidade de água (voltam ao normal 72 horas após receberem água), enquanto as segundas mantêm-se verdes, a despeito das condições, com mais de 90% de suas reservas de água.

A edição gênica é mais simples e barata do que a modificação genética, hoje alternativa limitada aos gigantes do setor e seus bolsos fundos. Além disso, podem ser mais rápidas de se levar ao mercado por exigirem menos testes de riscos à saúde (justamente por não se tratarem de modificações).

Pesquisas levam tempo. Os primeiros transgênicos foram comercializados no Brasil há 40 anos. Eram tomates que demoravam mais a amadurecer. De lá para cá, 90% dos grãos de soja plantados no Brasil e cerca de 80% do milho são transgênicos. Eles surgiram para conferir tolerância a insetos e herbicidas. Sua transformação exigia a manipulação de apenas um gene, segundo Gerhardt. Hoje, são muito mais variáveis em jogo.

A especialista garante que a complexidade só potencializa os ganhos com a valorização dos bancos de germoplasma. As pesquisas não podem esquecer, segundo ela, que a diversidade é fundamental. Até para evitar que um número reduzido de espécies aumente riscos de ataques de pragas ou pestes, como aconteceu na época da grande fome na Irlanda, nos anos 1840, como salienta Richard Pratt, professor da Universidade do Estado do Novo México, em artigo recente.

A batatinha mirrada e essas plantas esquisitas desérticas de Minas podem revolucionar a agricultura brasileira. “Quando se trabalha com adaptação climática, trabalhamos com as linhas disponíveis. A mensagem é que gente não vai adaptar a agricultura baseado apenas em uma estratégia. É um conjunto de algumas muito simples e outras mais complexas”, diz Carlos Pacheco.

Ele cita ainda alterações no sistema de produção. Em vez de cultivar em solo nu, substituir por soluções que protejam as espécies das intempéries, como sistemas agroflorestais (que integram alguns tipos de lavoura com plantio de árvores, por exemplo, árvores nativas e produção de hortaliças com fruteiras) ou estufas, que protegem de chuvas intensas.

No sistema de plantio direto, de cultura em solo, ressalta o uso de palha para proteger das chuvas contra a amplitude térmica, que mantém a temperatura mais agradável, economizando água. “São estratégias simples. Trabalho que publicamos em período muito quente em Brasília mostra que o cultivo do brócolis teve uma redução de 4,5 graus por conta da palha”, conta.

Sistemas de cultivo em ambientes fechados, verticais, completamente controlados, podem ter custo mais alto, mas oferecerem vantagens mais interessantes para hortaliças produzidas em ambientes urbanos. A hidroponia com circuito fechado de água, por sua vez, pode economizar 95% da água.

Pacheco ainda destaca o uso de biofertilizantes, como o hortibio, feito a partir de resíduos agroindustriais e microorganismos do solo. Eles oferecem, por exemplo, menor tendência ao “pendoamento floral” precoce da alface, o que é potencializado pelas altas temperaturas e dá gosto amargo à hortaliça.

Os orgânicos apresentam, sobretudo quando acrescidos de micronutrientes, algumas moléculas importantes promotoras do crescimento vegetal, e podem ser bons para a soja, o milho e o melão. E o mais estarrecedor: parte das respostas pode vir do espaço, como nos filmes de ficção científica.

A Embrapa firmou com a Agência Espacial Brasileira dentro do projeto Artemis protocolo de intenções para agricultura espacial. “A corrida espacial é importante. Condições muito estressantes no espaço podem oferecer respostas para a Terra, além de promover o desenvolvimento de novas tecnologias. Já deu origem ao GPS, que é importante no dia a dia e em grande parte da lavoura inclusive”, explica.

Pacheco também enfatiza a necessidade de políticas públicas, incentivos e de leis, como, por exemplo, voltadas para o reúso da água, em discussão no Brasil há mais de 20 anos. Hoje, a prioridade do uso de água é para consumo humano e de animais em caso de escassez, e não para a produção e plantio.

“Isso pode ser ameaça ao sistema de segurança alimentar. Não tem legislação nacional. Não tem sequer resolução do Conama ou do Conselho Nacional de Recursos Hídricos para determinar os teores aceitos de impurezas, a qualidade mínima da água”, afirma. Em outros países, está muito bem estabelecido, principalmente naqueles em que há escassez. “Tivemos crises hídricas recentes. Mas acho que a abundância nos leva a postergar”, diz.

Sobre a mesa, há soluções simples e baratas e mais complexas. Isso também exige acordos sanitários ou não com outros países. Não se pode abrir mão de nenhuma, segundo os especialistas ouvidos pelo Valor, sobretudo em um nação em desenvolvimento como o Brasil, com grandes desigualdades sociais e regionais.

“Existe falta de acesso e existe também quem simplesmente não queria recorrer a novas técnicas. É um direito. Tem gente com visões ideológicas. Quem quer usar orgânico não vai usar a hidroponia, que lança mão de adubos minerais”, diz Pacheco, que defende alternativas para beneficiar a todos.