Artigo: A soberania brasileira não pode ser refém

Opinião 30 Novembro -0001 | 4min de leitura

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Em 1982, o subcontinente sul-americano serviu de palco para a Guerra das Malvinas, conflito à la Clausewitz, que envolveu a Argentina e o Reino Unido. Uma decisão política da junta militar que governava o país vizinho desencadeou o desembarque de tropas nas ilhas contestadas secularmente. Pretendiam eles resolver pela força a antiga disputa diplomática.

A Inglaterra, liderada por Margaret Thatcher, deslocou uma poderosa esquadra para o Atlântico meridional e, após manobras típicas da Segunda Guerra Mundial, com combates aéreos, terrestres e marítimos, recuperou a soberania sobre aquelas terras vulcânicas.

Quase 10 anos após, com o "fim da história", segundo Fukuyama, e a liderança hegemônica da águia americana sobre o mundo moderno, a preparação para guerras entre nações foi relegada a plano secundário nos projetos militares de diversos países.

Assumiu-se como padrão doutrinário para as forças militares mais atuantes a guerra entre o povo, conceito explicado pelo general inglês Sir Rupert Smith na obra A Utilidade da força, e que gerou modificações nos equipamentos, nas estruturas organizacionais, na forma de emprego e na preparação de recursos humanos no campo militar.

As forças ganharam mais modularidade, mobilidade e rapidez, permitindo tanto a atuação no território sob sua guarda quanto como elemento de consórcios multinacionais sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) ou até de grandes potências.

Em fevereiro de 2022, o mundo foi acordado em seu idílico e inalcançável sonho de paz com a invasão do território da Ucrânia pela Rússia, em uma operação convencional de padrão clausewitziano. Há um mês, fomos acordados outra vez com a incursão do Hamas ao território de Israel, com os chocantes eventos que se sucederam e o revide das Forças de Defesa de Israel (FDI) em uma operação de padrão guerra entre o povo.

A permanência dos dois modelos — guerra à la Clausewitz e guerra entre o povo — trará como imperativo aos Estados modernos a necessidade de reforçar os princípios de guerra da flexibilidade e da segurança.

A nova conjuntura impõe às lideranças políticas e militares apontar os canhões responsáveis pela segurança dos Estados rumo ao futuro, antecipando-se aos conflitos que certamente virão com um acirramento dos novos interesses geopolíticos das grandes potências em todos os quadrantes do globo.

O Estado-Maior do Exército brasileiro, consciente desses desafios, promove estudos multidisciplinares com base no cenário suposto para o ano de 2040. A construção militar, ornada com viés acadêmico civil, elabora documentos indicadores das capacidades bélicas requeridas e os cursos de ação a serem seguidos para obtê-las.

Nesse processo, é importante destacar que, para o Exército brasileiro, a dimensão humana — homens e mulheres que vestem farda em defesa da sociedade — ganha proeminência. Os recursos humanos, influenciados pelas novas tecnologias e pela necessidade de decidir oportunamente diante dos desafios, serão os indutores da transformação das estruturas da força terrestre, e já se mostram capazes de compreender a constante evolução doutrinária, bem como a sofisticação dos novos equipamentos.

Esses estudos não podem ser alvos apenas de analistas castrenses. Devem igualmente ativar a vontade das lideranças políticas em aprofundar conhecimentos sobre eles para encontrar soluções orçamentárias, dando andamento aos projetos em elaboração pelas três Forças.

No caso da Marinha, o submarino de propulsão nuclear; no caso do Exército, a família de blindados sobre rodas; e, no caso da Aeronáutica, os caças gripen e os cargueiros KC-390. Esses são alguns exemplos.

Material de emprego militar não se encontra em prateleiras da Amazon ou Mercado Livre. Se desejássemos, agora, adquirir blindados para empregá-los na fronteira, os primeiros carros desembarcariam em nossos portos não antes de cinco anos.

São inúmeras as capacidades indispensáveis para promover a soberania do Brasil, um verdadeiro continente em dimensão territorial e em diversidade de ambientes operacionais.

Importante compreender que não estamos vacinados contra esses conflitos. Lembrem-se das Malvinas, da interferência histórica de grandes potências no continente e até das desavenças fronteiriças entre países, como a recente questão da Guiana Essequibo.

As capacidades são caras, difíceis de serem negociadas no ambiente externo ou produzidas de forma endógena, e quanto mais ineptas forem as lideranças políticas em avalizar e apoiar a preparação das Forças Armadas, mais rápido nos tornaremos reféns de outras potências.

* Otávio Santana do Rêgo Barros é general da reserva e foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército