Autoria e retirada de assinatura em propostas de iniciativa coletiva no Legislativo

Davi Rocha Teles 08 Maio 2024 | 6min de leitura

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A Constituição de 1988 prevê propostas de iniciativa tanto individual quanto coletiva. As de iniciativa individual são aquelas apresentadas individualmente por qualquer parlamentar, como um projeto de lei ordinária. Outros parlamentares podem até subscrevê-la, mas suas assinaturas são prescindíveis para a apresentação.

As de iniciativa coletiva são aquelas que só podem ser apresentadas se subscritas conforme o quórum mínimo legal. São os casos de propostas de emenda à Constituição (PECs), as quais dependem da assinatura de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado – artigo 60, I, da Constituição – e das comissões parlamentares de inquérito (CPIs), que dependem de requerimento de um terço dos membros da respectiva Casa – artigo 58, § 3º, da Constituição.

É verdade que a proposta coletiva pode ser redigida por um único parlamentar, e o esforço dos demais se resumir a subscrevê-la. Todavia, isso não leva à conclusão de que o primeiro subscrevente seja mais ou menos responsável pela autoria que os demais. Afinal, conforme o artigo 102, § 1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), para efeitos regimentais, todos os signatários são autores.

Mas nem sempre foi assim. No RICD de 1949, era autor apenas o primeiro signatário. Ao lado dessa previsão, em 1955, foi incluída a regra de que “são de simples apoiamento as assinaturas que se seguirem à primeira, exceto quando se tratar de proposição para a qual a Constituição, ou o Regimento, exige determinado número”; igualmente reproduzida no RICD de 1972[1].

Com o RICD de 1989, a regra mudou, e todos os signatários passaram a ser considerados autores. Nessa posição, podem exercer a atividade parlamentar, ou seja, apoiar, provocar outros interessados, publicar seu conteúdo, tecer manifestações em seu favor ou não. Quanto às competências regimentais, como regra de organização dos trabalhos, “serão exercidas em Plenário por um só dos signatários da proposição, regulando-se a precedência segundo a ordem em que a subscreveram” (RICD, artigo 102, § 2º).

Até 2019, os deputados podiam retirar a assinatura até a respectiva publicação da proposição ou, no caso de requerimentos, até a apresentação à Mesa. Como exemplo, a “PEC do terceiro mandato de Lula”, apresentada em 2009, teve as assinaturas de 17 deputados retiradas e, com isso, foi devolvida pela Secretaria-Geral da Mesa ao primeiro autor.

Vista dessa perspectiva, a retirada de assinatura aparece como prerrogativa do parlamentar, como dimensão negativa da prerrogativa de ser autor de proposição (artigo 61, caput, Constituição). Se ao parlamentar é conferida a prerrogativa de ser autor de projetos de lei – dimensão positiva –, também deve poder não lhes subscrever.

No entanto, a Resolução 12/2019 modificou a redação do § 4º do artigo 102 do RICD para dispor que “nos casos em que as assinaturas de uma proposição sejam necessárias ao seu trâmite, não poderão ser retiradas ou acrescentadas depois da apresentação à Mesa”. Com a alteração, eliminou-se a possibilidade de devolução de PECs, antes da respectiva publicação, por retirada de assinatura.

Para se defender a impossibilidade de retirada de assinatura, poder-se-ia recorrer ao decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança 26441, em que se mencionou a impossibilidade de retirada[2]. Todavia, a (im)possibilidade de retirada de assinaturas não foi apreciada pela corte na ocasião, de modo que a menção à retirada foi apenas citação indireta do texto do RICD.

Outro recurso seria defender que a impossibilidade de retirada de assinaturas exigiria dos parlamentares maior atenção com o conteúdo das proposições que subscrevem. Assim, cada parlamentar só assinaria aquilo com que de fato concordasse, evitando que assinasse algo sem ler. Mas esse argumento ignora a dialogicidade do processo legislativo. Ainda que parlamentares estejam convictos no momento da subscrição de que concordam ou que querem ver aquela matéria discutida, podem mudar de posição ao longo da discussão. Por que devem continuar subscritores de algo que não mais concordam?

Também a participação social é prejudicada, pois, se aqueles que apresentaram as assinaturas estão obrigados a mantê-la – ou se são mantidos os efeitos dessas assinaturas; o que, na prática, importa o mesmo –, as contribuições – esperadas em um processo legislativo aberto – pouco surtirão efeito.

Se a retirada de assinaturas do Requerimento 34/2023 da Câmara Municipal de São Paulo – para “criação e instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito, (…) com a finalidade de investigar as Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia” – for inócua, então as pressões da sociedade civil contra a instalação da CPI não lograrão sucesso em impedir a instalação.

Ao contrário, ainda poderá estimular apoiadores de ocasião, os quais subscrevem e, em seguida, retiram o apoio, cientes de que a retirada não afastará os efeitos da aposição da assinatura. Como a democracia exige, para além da escolha, a responsabilidade e a publicidade da atividade parlamentar[3], isso não parece estar de acordo com um processo legislativo transparente.

No caso da Câmara paulistana, seu Regimento Interno estabelece que as assinaturas seguintes à do primeiro signatário, qualificado como o autor, “serão consideradas de apoiamento, implicando na concordância dos signatários com o mérito da proposição e não poderão ser retiradas após sua entrega à Mesa” (artigo 214, caput e parágrafo único). Contudo, a previsão constitucional da iniciativa parlamentar coletiva não é mero endosso, como se os subscritores seguintes assinassem uma lista de apoio. Ao revés, como todos são igualmente autores, reveste-se, a partir da manifestação dos parlamentares em conjunto, como uma vontade só, a qual não se perfaz sem o atendimento do mínimo legal exigido.

Interpretado conforme a Constituição, o dispositivo do Regimento Interno da Câmara de São Paulo não parece aplicável às hipóteses constitucionais de autoria coletiva necessária, como são as PECs e as CPIs, em que todos os subscritores são autores. Não há nada na Constituição que indique que, nos requerimentos de CPIs e nas PECs, apenas o primeiro subscritor seja o autor e os demais, meros apoiadores.

Considerados todos os subscritores como autores e reconhecida a prerrogativa de retirada de assinatura, a questão é saber até quando poderá ser exercida. Não parece adequado que possa ser exercida em qualquer momento, sob o risco de se ver atacada a segurança jurídica e o regular andamento dos trabalhos – imagine se na véspera da votação do relatório final de uma CPI os subscritores decidem retirar a assinatura. Mas isso não pode significar que não poderá ser exercida em momento algum. Resta a cada Casa corrigir essas distorções ou ao parlamentar prejudicado provocar o Poder Judiciário para sua definição.

[1] PACHECO, L. B.; RICCI, P. Normas regimentais da Câmara dos Deputados: do império aos dias de hoje. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017, p. 454-455.

[2] “O requisito constitucional concernente à observância de 1/3 (um terço), no mínimo, para criação de determinada CPI (CF, art. 58, § 3º), refere-se à subscrição do requerimento de instauração da investigação parlamentar, que traduz exigência a ser aferida no momento em que protocolado o pedido junto à Mesa da Casa legislativa, tanto que, “depois de sua apresentação à Mesa”, consoante prescreve o próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 102, § 4º), não mais se revelará possível a retirada de qualquer assinatura”.

[3] ELY, J. H. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 167.